Paulo Roberto Parreiras Rezende - Escritor itaguarense

A vida nas estantes

Por causa de uma miopia fortíssima, só fui descobrir que árvores tinham folhas quando já tinha quase oito anos. Antes dos óculos, devo até ter visto e pegado algumas, caídas. Mas não me lembro de relacioná-las com árvores, até então apenas borrões verdes na paisagem.

 Foi nesta mesma época que descobri as letras, e aprendi que elas se juntavam umas com as outras para formar palavras. Que se transformavam em frases, períodos, histórias, livros! Leituras: minha vida de menino tinha uma nova amplitude, galáxias pra conhecer. E logo passei a gastar com leitura cada minuto livre – ou mais ou menos livre, como no almoço, em que sem ver colocava garfadas na boca.

Em casa, tínhamos vários livros – vidas de santos, alguma coisa de literatura e manuais de latim (papai, ex-seminarista, era professor desta língua). Acabado o estoque doméstico que pude consumir, parti para as casas vizinhas. Dona Clarinha me emprestou várias vezes alguns volumes da Biblioteca de Seleções. Dona Angelina também colocou seus livros à minha disposição. Na casa de Tia Licinha, eu passava tardes mergulhado em coleções de revistas “O Cruzeiro”, “Manchete”, “Realidade”. Revistinhas, de histórias em quadrinho, li o acervo completo da Dilu e da Carminha, da Dona Carmem. Do Clebinho, da Dona Vina, peguei emprestado um monte de edições do “Jornalzinho”, uma delícia de publicação mensal. O Virgílio Coutinho, professor de inglês, me passou a coleção completa de José Mauro de Vasconcelos. Outro professor, o Wagner Lara, meu querido Tirôla, me apresentou ao realismo mágico de “Cem anos de solidão” e a outras dezenas de obras, além do jornal que definiu meus rumos na vida, “O Pasquim”.

 Mas toda a boa vontade de vizinhos, parentes e amigos não era suficiente, assim como não o foram os acervos de livros do Coronel Frazão e do Monsenhor João Rodrigues. Aí, de repente, uma das melhores notícias dos meus até então doze anos: Itaguara ganhou sua Biblioteca Municipal! Livros para todos! Nada mais justo, pouca coisa mais necessária: livro nunca foi só entretenimento, cultura é também fermento para mudar a sociedade.  

 Não me lembro bem da primeira sede da Biblioteca, colada na farmácia do seu Wandy. Mas a segunda, no alto do prédio da prefeitura, na então Rua de Baixo, basta fechar os olhos pra rever. Principalmente pela escada, muito íngreme, de dar vertigem. Mas valia a escalada: o acervo crescia a cada ano mais (apesar de minha voracidade por leitura avaliar que o ritmo de compras podia ser mais acelerado...). Romances, livros infantis, enciclopédias, dicionários, novos materiais para pesquisas, trabalhos escolares em grupo, a bibliotecária Maria Oleitia sofrendo para colocar ordem naquele monte de crianças e adolescentes. E eu lá, sozinho ou com a turma, lendo, aprendendo, querendo mais. 

 Saí de Itaguara antes que a Biblioteca completasse seus primeiros dez anos. Voltei a ela, uma vez ou outra, sempre bem acolhido. Mas há décadas não mato a saudade que me acompanha, junto com as lembranças: quem sabe, dia desses?

 Não sou mais míope – cirurgia de catarata, já –, e muito menos menino. Mas o amor da infância amadureceu junto comigo. Brinco que sou filho de livros. De tanto lê-los, escrevi e publiquei alguns: virei pai de livro. Não bastou para saciar o amor: virei tio de livros, com uma editora na qual já publiquei quase uma centena deles – que me trouxeram dezenas de novos amigos, os autores. 

 Continuo, naturalmente, lendo. Não o suficiente, como sempre, acho, claro. Mas carrego, pra qualquer lugar, na mão ou no bolso, uns duzentos livros: me afeiçoei aos Kindles e Kobos da vida. Mas tem livro que só mesmo em papel. É preciso alisar a capa, sentir a textura do miolo, aspirar o cheiro próprio de cada um, aproveitar o passar da página para uma microrreflexão. Como reler Guimarães Rosa numa tela? Com ele, foi como confirmar que, sim, as árvores são mesmo feitas de folhas. E descobrir que, mesmo vindas da mesma árvore, duas folhas podem ter histórias totalmente diferentes. E, juntas, formarem uma terceira, uma quarta, uma Via Láctea de narrativas. E eu aqui, doidinho pra ler cada uma...

 Que a Biblioteca Municipal de Itaguara, e seus hoje quase 30 mil livros (hummm!), continuem a contribuir para despertar o amor pela leitura. O que se aprende com prazer sempre nos proporcionará boas histórias de vida.    

 

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